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Chão w3d15

Quando vocês estiverem lendo este artigo, já estarei longe daqui, na fronteira do Brasil com o Uruguai e com a Argentina, ao mesmo tempo. Há uma coxilha, inclusive, de onde se veem os três países. À esquerda, ao Sul, a o Rio Quaraí, que a estas alturas deve estar à “meia caixa”, como se diz. Em breve mostrará as suas pedras cortadas pela corredeira. À frente, para oeste, vemos a mata ciliar do Rio Uruguai, secundada pela savana do Parque Nacional do Espinilho. Aqueles capões de eucalipto ao fundo já estão no território argentino. Giro para leste e vejo o estabelecimento rural em meio ao arvoredo, cercado de campos de gado e arrozal.arei dez dias por lá, terra de minha infância e juventude, que de tempos em tempos tenho que tocá-la para ver o que em mim ainda existe. A maior parte da vida ei em outros lugares. Não me queixo. Mas há sempre um lugar onde a noite tem mais estrelas e o sol é mais dourado. Esse lugar é lá. Reconstituo com facilidade cada detalhe da paisagem, como era há trinta, quarenta anos atrás. E como é hoje.Pelos lugares que ei sempre estive razoavelmente à vontade e todos eles guardam histórias tantas que tão pouco me lembro. Ficaram grudadas a velhas paredes às quais dificilmente voltarei. Algumas são salvas honrosamente por aquelas pessoas com quem as compartilhamos. Perecem, também, nos infinitos arquivos digitais onde foram capturadas, estáticas, aguardando o improvável dia em que as visitaremos.Não muito longe de ali, a cidade de Uruguaiana parece ter ado asfalto sobre toda a época em que perambulei à toa por aquelas ruas retas e calçadas largas. Ela mais parece ocultar, soterrar, negligenciar. Ela não me quer ali. Os prédios que eram grandes hoje são pequenos, a praça encolheu e as pessoas estão todas escondidas atrás de portas sem aldravas. O casarão onde vivi foi repartido em pequenos comércios de bugigangas e quinquilharias. Só a beira do rio, com seus casebres descascados, parece ainda contar algo, que eu não tenho tempo de ouvir.É muito ao natural, portanto, que ao chegar no final da BR 290 eu dobre à esquerda, rumo à Barra do Quaraí. Rumo ao Pai-o. Eu estava lá, pescando com meu irmão, quando a antiga casa da estância pegou fogo. Veio uma caminhonete nos buscar como para se certificarem de que não havíamos voltado mais cedo e não estivéssemos lá dentro.A muitas léguas do carro de bombeiros mais próximo, um incêndio se torna contemplativo. Não há o que fazer contra o tesão das chamas pelas paredes de madeira. Em um prédio mais antigo, de alvenaria, ligado ao galpão, foi-se improvisando uma nova moradia e, de puxadinho em puxadinho, há hoje uma casa confortável. Tanto mais com a chegada da energia elétrica, o que aconteceu muito tempo depois do incêndio.Por onde um dia foi a casa, afloram alguns restos da fundação. Fantasmas vivem velhas histórias. E o perfume de antigas madressilvas ainda guarda os segredos das paredes. 4l5d73